29 de maio de 2011

"4 minutos e 33 segundos"

Exposição de Pintura " Representações do Silêncio"
the master's "silent piece"



«… Tudo o que fazemos é música…»
John Cage.
… Tensão...
A mente ocidental tem como registo-base o pensar. Desde pequeninos apreendemos o mundo pelos sentidos e pensamos acerca das nossas percepções sempre tão impartilháveis e contingentes. Desconfio que já pensávamos quando estávamos em gestação. Suspeito ainda que mesmo antes disso já pensávamos enquanto neurónios dispersos pelos corpos físicos dos nossos antepassados, em antecedência ao projecto de ser que ainda não éramos - nem pensávamos vir a ser um dia. A provar-se isto, facilmente se diria que todo o Universo pensa e que ao pensar - se pensa a si mesmo -, o que para o caso pouco importa. Cosmo/onto/teo/logias à parte o ser humano pensa e pensa e volta a pensar em todos os actos da sua vida, e pensa até a morte o levar. Ouso afirmar que mesmo depois disso continuará para sempre a pensar por intermédio daqueles que persistem.
Não sei se pensamos por herança cultural ou por hábito genético anteriormente inculcado. Simplesmente pensamos e a mente dá voltas, piruetas e saltos mortais e não pára jamais. Constrói autênticos corolários de mundos feitos de abstracção conceptual. Mundos feitos de um glorioso nada afinal. No entanto nós que dizemos abstrair por tanta abstracção fazermos, ao abstrair-nos de qualquer um dos estímulos dos sentidos - praticando aí uma verdadeira abstracção de nós mesmos, porque reagimos tão estranhamente, da impassividade ao riso e da surpresa até à cólera? No caso do silêncio porque nos sentimos tão chocados, abtraídos (traídos em si) e em tensão, devido à falta de um qualquer input exterior?
Somos tão solicitados a fazer minutos de silêncio pelas vítimas das mais nobres causas, e quando o fazemos pela nossa própria causa a estranheza surge e com ela a tensão. É que a ideia de silêncio deixa-nos entregues aos nossos conteúdos interiores e o que nos choca realmente é a suposição da aplicação a nós mesmos - da atenção do próximo.
… Atenção…
Juntar muitas pessoas num recinto de espectáculos a fim de escutar uma peça musical é comum. Incomum é o facto de a obra a escutar ser aparentemente uma não-obra cuja execução é deixada ao cuidado do som gerado pelo colectivo público/orquestra. Aí e num ápice esbate-se a diferença funcional e sem abrigo certo, todos passam a ser um mesmo corpo de silêncio. Neste nivelamento súbito todos passam a ser simultaneamente executantes e espectadores. Aí ninguém interpreta mas todos se interpretam, pois a tensão surge pela formação espontânea de uma comunidade organizada em torno da cumplicidade do silêncio. Esta é uma situação incómoda perante a qual convenções habituais como sejam a história da música ou o estilo, o ritmo ou o tipo de andamento, a subjectividade da interpretação ou o gosto pessoal derrocam, surgindo em seu lugar um crescente cepticismo epistemológico relativamente ao conhecimento perceptivo. Isto ocorre da vivência de uma Crítica da Audição Pura a qual é mais e mais apurada, à medida que o tempo decorre e que ocorrem as irreprimíveis manifestações fisiológicas inerentes à condição de quem é ser vivente num corpo físico. Este corpo passa assim à condição de instrumento atento que ger(e)a uma composição ad libitum, metamorfoseando gradualmente tensão psicológica em atenção perceptiva aplicada à densidade envolvente. Nos raros momentos em que todos conseguem suspender o seu contributo sonoro, subsiste ainda e sempre em fundo uma ténue, grave e crescente ressonância residual. Esta tem uma dupla causalidade; ambiente e subjectiva. Ambiente porque mesmo que tudo esteja em (suposto) silêncio toda a realidade vibra e essa vibração gera som. Subjectiva porque o simples funcionamento de todo o organismo vivo - julgado silencioso - gera som. Os batimentos cardíacos e a respiração que o digam.
Quando se gera um tempo aperceptivo cujo único objecto é a própria percepção a mente em tensão capta a densidade, transformando o desconforto da tensão em gestão da atenção com que a consciência se dirige aos fenómenos a fim de os poder pensar. Será isto meditar?
… Meditação…
Mas que forma de entender a realidade é esta que não se apercebe da mais radical presença que nos rodeia constantemente? Todo o nosso pensar é sempre acompanhado por fenómenos musicais - compostos por som e silêncio. Nesse sentido cada um de nós é um compositor pela forma pessoal como gere a sua musicalidade interna - com a qual organiza o mundo. Na placenta já ouvíamos o rumor anunciado de um mundo exterior mediado pelo abrigo natural de transição que era o ventre de nossa mãe. Quando nascemos fizemo-lo com alarido e pela acção gradual da idade surge a modulação do ruído consonante à nossa identidade, o qual se vai harmonizando e ganha a função de palavra musical directora de sentido. Vivemos num mundo de som e som(os) surpreendidos pela tensão, e acalmamo-nos pela atenção com que objectivamos tudo aquilo que identificamos, até um dia concluirmos que tudo o que existe é composto de melodia imanente à sua força vital na existência. Ainda assim, a suposição de ausência dessa presença sonora invoca em nós o fim certo anunciado naquele dia marcante do final da infância - quando chocados descobrimos a consciência da finitude humana. É que - como bem sabemos - quem morre deixa de fazer ruído. Assim quando alguém pressente a aparência do silêncio surgir, preenche de imediato esse suposto vazio com o ruído produzido pelo seu pensamento, evitando compulsivamente o fantasioso “silêncio de morte”. Assim abs-traímos e nos dis-traímos para que tudo continue fazendo sentido - nem que este seja falso - e apenas à imagem da conveniência das convenções e interesses sociais. Assim surge a ilusão colectiva de que há silêncio no Mundo, quando aquilo a que chamam silêncio é já por si o som expressivo desse imenso sistema chamado Universo.

Tensão. Atenção. Meditação. Quando um autor atinge um tal grau crítico em relação à percepção, certamente considera que nada tem a dizer, e como nada tem para dizer cala-se. Ao calar-se deixa o universo compor e exprimir-se durante “4 minutos e 33 segundos”.
Peço 33 segundos de silêncio em homenagem a um “silêncio“ que não existe…
Texto de José Neto

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